terça-feira, 18 de agosto de 2015

Kafka à beira-mar: Uma leitura

Kafka à beira-mar: Uma leitura


Escolástico, Sérgio Augusto


            O objetivo desta comunicação é introduzir aos leitores incipientes do romance Kafka à beira-mar, elementos necessários para uma leitura aprazível, bem como, instigar aos que já a fizeram, o interesse por uma releitura.
           

O autor


            Haruki Murakami é considerado um dos mais populares escritores japoneses da atualidade. Nascido em Kyoto no ano de 1949 e criado em Kobe, formou-se em dramaturgia clássica pelo departamento de literatura da Universidade de Waseda[1], residiu na Europa e nos Estados Unidos, onde lecionou em algumas universidades. Foi laureado com inúmeros prêmios literários e com indicações para o Nobel da Literatura. Autor de diversas obras, entre elas, ensaios, novelas, contos e livros, dentre os quais, podemos destacar os livros: Caçando carneiros de 1982; Minha querida Sputinik de 1999; 1Q84 de 2009 e Norwegian Wood de 1987, que contou com uma tiragem de 20 milhões de cópias e que lhe rendeu o prestigioso Prêmio Tanizaki.
            Haruki Murakami é um escritor fortemente influenciado pela cultura ocidental. Suas obras possuem uma linguagem simples, carregada de reflexões filosóficas e bom humor. “É fácil de ler e instrutivo, vem salpicado de um humor”, afirmou a tradutora Lica HASHIMOTO (2012), em entrevista à Revista Época.


Desvendando Kafka à beira-mar


O romance Kafka à beira-mar foi publicado em sua composição germinal no ano de 2002 originalmente em japonês sob o título Umibe no kafuka pelo escritor japonês Haruki Murakami e sua versão em português foi traduzida por Leiko Gotoba[2]. A obra foi publicada em 49 capítulos e um prólogo.
O livro segue a corrente do realismo fantástico, onde duas histórias se desenvolvem paralelamente em capítulos alternados e seguindo o roteiro da tragédia grega Édipo Rei.
Nos capítulos ímpares, narrados em primeira pessoa, o protagonista é o jovem Kafka[3] Tamura, que foge de casa aos 15 anos, assombrado por uma profecia ditada pelo pai, um famoso escultor com o qual mantinha uma atribulada relação. Compartilha suas angustias com um amigo imaginário, apresentado no prólogo pela alcunha de menino corvo.
Já nos capítulos pares, narrados em terceira pessoa, nos deparamos com Nakata Satoru, um simplório e simpático velhinho vítima de um misterioso incidente na infância que o privou da memória e de algumas capacidades mentais básicas, mas que em contrapartida recebeu o dom de se comunicar com gatos e fazer chover peixes e sanguessugas.
O leitor vai se confrontar no decorrer das narrativas com o autocontrole, a rotina de exercícios e o racionamento de recursos do jovem Kafka e ao mesmo tempo com as extravagâncias e o non-sense de Nakata. As duas situações parecem querer se entrelaçar ou se tocar a todo instante. A analogia entre as duas fica por conta dos leitores.
Kafka à beira-mar poder ser visto como um resumo de todas as obras do autor, pois agrega todas as características apresentadas nas obras anteriores. Os personagens principais, no entanto, são desvios significativos em relação aos protagonistas típicos dos romances de Murakami, que geralmente situam-se na faixa dos vinte a trinta anos e são possuidores de personalidades corriqueiras.
Apesar de a obra possuir um volume considerável, o ritmo de desenvolvimento da história ocorre relativamente rápido. Várias situações podem ser situadas ou atadas dentro de uma lógica imediata, outras ficam aguardando a oportunidade de se alinharem ao contexto geral.
Ao final de cada narrativa existe sempre certa tensão ou mistério a ser desvendado e quando tudo parece estar prestes a ser revelado, o capítulo chega ao fim, despertando no leitor o desejo de transpor a leitura do capítulo seguinte.
Como é possível observar o livro todo é repleto de mistério e simbolismo. O autor parece convidar o leitor para desvendar o enigma oculto existente em cada página.


 Analogia a Franz Kafka


Logo no início, ao se deparar com o título, o leitor é remetido à lembrança do escritor tcheco Franz Kafka. O artifício certamente foi utilizado pelo autor para chamar a atenção para os aspectos comuns entre a história e as obras de Franz Kafka, como que deixando de sobre aviso a memória dos leitores para as analogias que seriam evidenciadas no decorrer da trama.
            Em A metamorfose e Carta ao pai onde são abordadas questões relativas à adolescência, à figura paterna associada à opressão e ao aniquilamento da vontade humana, estão presentes perspectivas intrínsecas a narrativa em questão. A duplicidade, o estranhamento, labirinto, criticas e tabus também são características comuns presente em Kafka à beira-mar e nas obras de Franz Kafka.
            Quando o autor lançou mão do uso do nome Kafka, que em tcheco significa corvo, para denominar uma de suas personagens principais, ele consegui amarrar em torno disso toda a trama, como que se fosse factível condensar um livro inteiro em um nome, tal o grau de ligações possíveis.
            Outro aspecto interessante a ser abordado é o uso de anagrama por Haruki Murakami no romance em questão, recurso também amplamente utilizado por Franz Kafka. Tal afirmação é facilmente verificada ao fazermos a ligação entre o nome Nakata Satoru e as palavras Karasu (corvo em japonês), Sakura (outra personagem) e katana (espada japonesa).


Intertextualidade e exibição cultural


            Haruki Murakami de forma curiosa faz diversas referências diretas a arte e a literatura, como que instigando o leitor a investigá-las e consequentemente, depois disso, poderem compartilhar da mesma visão de mundo.
            Apesar de estar ambientada no Japão, a história esta repleta de referencias ocidentais, evidenciando o estilo globalizado de Murakami, que faz desfilar por suas páginas: Charles Dickens, François Truffault, Schubert, Prince, Led Zeppelin, Natsume Soseki, Arnold Schuwarzenegger, John Walker, Walt Disney, Franz Kafka e suas obras, tragédias gregas, As mil e uma noites, Archiduque Trio, The 400 blows, entre muitas outras.
            Entre as inúmeras obras da literatura japonesa citadas, o autor escreve sobre a Rokujou, personagem de um episódio de Genji monogatari (Contos de Genji), como introdutório para um capítulo adiante, quando o jovem Kafka fica inconsciente ao mesmo tempo em que o pai distante (na figura do temido Jonnie Walker) é assassinado. Evocando a existência do ikiryou[4], espera o autor desta forma, que o leitor faça a ligação.
            Além desse verdadeiro retalho de intertextualidade que povoa a obra, em diversas situações onde são descritos acontecimentos e lugares, o leitor será impelido a tentar contextualizar essas passagens com acontecimentos históricos e lugares reais. O escopo de tal esforço, justificado por essa análise anacrônica dos fatos é a tentativa de se aproximar do ponto de vista do autor e do correto entendimento da mensagem, que o leitor supõe estar sendo apresentada. 
            Em alguns trechos o autor deixa evidente a ligação que o leitor deve fazer, em outros, camufla, de forma a premiar os mais abastados culturalmente.

Personagens e conexões


O protagonista da história é Kafka Tamura, um menino de quinze anos abandonado aos quatro anos pela mãe, que deixou o lar levando apenas a filha[5]. Durante o desenvolvimento do enredo ele perdoa a mãe e vence o medo e a raiva dentro de si. Foge de casa e do pai cruel que o privava de desenvolver relações interpessoais saudáveis. É atormentado por uma profecia de seu próprio pai que previa que Kafka mataria o pai e desposaria a mãe e a irmã.
            Nakata Satoru é apresentado ao leitor como coprotagonista e talvez a figura mais emblemática da história. Trata-se de um simplório e simpático velhinho, vítima de um estranho incidente ocorrido na infância, capaz de gerar chuva de sanguessugas e peixes. Possui um sentimento de despojamento, alheio a tudo, não reclama da vida, apenas se justifica para as pessoas por não ser inteligente. Tem por profissão ser um exímio caçador de gatos perdidos, amparado pelo dom de poder se comunicar com os mesmos. Em sua caminhada está em busca de uma pedra capaz de abrir e fechar a entrada para outra dimensão.
            No capítulo destinado a Nakata criança, na ocasião que ocorreu incidente, em uma leitura atenta, o leitor é levado a acreditar que nesta ocasião a pedra foi aberta acidentalmente.
Outra personagem de destaque na trama se traduz na figura da Senhora Saeki, administradora da biblioteca e suposta mãe de Kafka e que lhe surgia em sonhos com a idade de quinze anos.
            A maneira como ela passa de uma estudante apaixonada por um jovem brutalmente assassinado para mãe de Kafka e depois desaparece e seu envolvimento neste lapso temporal tem que ser atentamente estudado.
Destaca-se ainda o personagem Oshima, jovem funcionário da biblioteca, andrógeno e que sofre de uma doença que lhe poder tirar a vida a qualquer momento. Nakata apoia Kafka desde o começo e lhe fornece abrigo em sua enigmática cabana na floresta.
            Segundo Oshima, tudo no mundo é metáfora. Sua existência nos remete ao livro “O banquete” de Platão.
A irmã do jovem Kafka é chamada Sakura, uma moça que cruza o caminho de Kafka e que para ele pode ser sua irmã. Depois de dormirem juntos, a possibilidade de ter havido incesto atormenta o pensamento do jovem Kafka que acredita estar a profecia se realizando.
Como companheiro de cruzada de Kafka Tamura surge Hoshino, um caminhoneiro de modos grosseiros que larga sua vida monótona para seguir Nakata. Começa a apreciar a música e a liberdade. Percebe-se que o autor, através de Hoshino faz uma crítica ao estilo de vida da sociedade japonesa.
No prólogo da obra é apresentado em um capítulo exclusivo o Menino Corvo, o alter ego de Kafka. Este surge como um amigo que lhe dá conselhos e o incentiva.
Koichi Tamura fica encarregado de ser o vilão da história. O pai de Kafka é descrito como um famoso escultor. Também encarna a figura de Jonnie Walker (o mesmo do uísque), que come o coração dos gatos e lhes rouba as almas para construir uma flauta mágica.
Não menos importante, o enredo conta com a participação do personagem Coronel Sanders. A figura é a mesma utilizada pela rede de lanchonetes Ketake. Auxilia Hoshino na busca pela pedra que abre a passagem entre as dimensões.
            Através da figura do Coronel Sanders, que historicamente nunca foi um coronel de verdade, o autor chama a atenção para o pós-guerra. Em uma conversa com Hoshino, diz:

- Escuta uma coisa que te vou te dizer, meu caro Hoshino. Deus só existe na cabeça das pessoas. Aqui no Japão, o conceito de Deus sempre foi entendido de uma maneira aberta. Vê só o que aconteceu a seguir á guerra. Douglas MacArthur ordenou ao divino imperador que deixasse de ser Deus, e ele obedeceu.

            Por intermédio deste personagem o autor critica a segunda guerra e a condição dos vencidos, que foram levados a aceitar a ocupação americana e por acreditarem que ao ter participado de uma guerra injusta deveriam esquecer o que passou e admitir as consequências.


Considerações finais


            Com a conclusão da leitura, muitas dúvidas afloram ao pensamento do leitor no sentido de identificar sobre o que realmente trata o livro. Para muitos, o livro se refere à necessidade imperativa das pessoas deixarem suas zonas de conforto (como o caminhoneiro Hoshino) e fazer algo incomum. No entanto, alguns leitores acreditam se tratar do ritual de passagem para o mundo adulto, assim como em A Metamorfose, de Franz Kafka. Ainda dentre as hipóteses levantadas encontramos a possibilidade da obra abordar a busca por uma alma gêmea ou se tratar de uma viagem metafórica pelo inconsciente. Provavelmente, como acontecer com outras obras, cada leitor fará uma leitura diferente, de acordo com seus conhecimentos, sua cultura ou sua maneira de ver o mundo
Haruki Murakami, em seu site, abriu um espaço para questionamento dos leitores após o lançamento do livro e recebeu em torno de oito mil perguntas, das quais, respondeu pessoalmente mil e duzentas, no entanto, não deu a solução das incógnitas do livro.
Durante uma entrevista para um canal de televisão disse que o segredo para entender o livro está em reler o livro várias vezes.
É evidente que a obra de Haruki Murakami é muito mais que apenas um romance fruto da imaginação de um excelente escritor. Trata-se de um trabalho minuciosamente elaborado, com uma trama complexa que esconde nas entrelinhas segredos frutos de anos de estudo.
Talvez apenas releituras não sejam suficientes para a compreensão do livro, talvez seja preciso o conhecimento de mundo do autor ou um conhecimento cultural em especial. Talvez o leitor nunca saiba se algum mistério a ser descoberto realmente existe. Mas certamente a cada pista seguida é possível descobrir um novo mundo, e para explorar esses mundos em sua totalidade seria necessário um tempo ilimitado, que só poderia ser alcançado, assim como no livro, em outra dimensão, mas que de qualquer forma, necessita de um primeiro passo.


Referências bibliográficas


Haruki Murakami. Disponível em: <http://www.randomhouse.com/>. Acesso em: 20 de abril de 2014.

KAFKA, Franz. A Metamorfose. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 96 p.

KAFKA, Franz. (1919) Carta ao pai. Trad. Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2006. 112 p.

MURAKAMI, Haruki. (2002). Kafka à beira-mar. Trad. Leiko Gotoda. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2008. 571 p.

NAMEKATA, Márcia Hitomi. O teatro Nô: Tradição e modernidade. Curitiba, julho de 2013. Projeto de extensão da UFPR.

PLATÂO. O Banquete. In.: Os pensadores. Tadução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Victor Civita, 1972. 269p.

PONTES, Felipe. Como Haruki Murakami conquistou leitores que preferiam a internet à literatura. Época, 16 de novembro de 2012. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/cultura/noticia/2012/11/como-haruki-murakami-conquistou-leitores-que-preferiam-internet-literatura.html>. Acesso em: 20 de abril de 




[1] Waseda Daigaku é também conhecida pelo nome de Soudai.É uma instituição particular de ensino superior, localizada na cidade de Tóquio. Foi fundada em 1882 e esta entre as 20 mais conceituadas universidades do Japão.
[2] Kafka à beira-mar [ Umibe no Kafuka, 2002]. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2008. Tradução do japonês Leiko Gotoda. 571 p..
[3] Nome adotado pela personagem e cujo nome real não é revelado no decorrer da história.
[4] Conceito japonês para alma de vivo ou de morto que assolada por fortes emoções pode viajar para longe de seu corpo para resolver assuntos pendentes.
[5] A existência de lares desfeitos começou a surgir nos noticiários japoneses como tema recorrente no final dos anos 90, escandalizando a sociedade. O autor situa muito bem o exemplo da família de Kafka.

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