Há muito tempo atrás, um demônio pavoroso morava no Monte Shirane, Joushu, atual Província de Gunma-ken. Quando esse demônio estava com fome, ele descia do monte, sequestrava os moradores e os devorava. Os moradores dos arredores da montanha viviam com medo de serem devorados pelo demônio.
Em certo dia em uma casa da aldeia, o velhinho disse para sua velhinha:
- Então, como hoje é dia das crianças (meninos), querida... Querida... Hoje de manhã vamos comer uma sopa de inhame ralado. Para isso era preciso ralar o inhame. Ele então saiu para o campo para cortar a relva.
Justamente neste momento o demônio do Monte Shirane estava acordando. Ele disse:
- Aí, estou com fome, então vou descer do monte, sequestrar um humano e comê-lo.
Despois que disse, esticou as pernas e deu uma olha para a aldeia na base do monte.
- Puxa! É dia das crianças na aldeia que fica na base da montanha, certo! Hoje vou comer até a saciedade, hoje vou comer comida de dia das crianças. Disse enquanto descia vagarosamente.
Por um buraco espiou para dentro da casa que vira lá de cima. Dentro da casa a velhinha moía o inhame e dizia consigo mesmo:
- É dia das crianças, vou moer bastante e alegrar o meu velhinho. Ela começa a moer o inhame com o almofariz.
- Ah! Aquela velhinha tem em suas mãos chifres de demônio e o este ralando. Chifre de demônio é comida de dia das crianças... e eu não sabia disso. Certo, vou tentar também.
Então o demônio voltou para casa e fraturou o próprio chifre e começou a moer, no entanto, não conseguia moer o chifre do demônio por causa da dureza.
- Curioso... Aquela velhinha moía tão facilmente, mas eu não consigo moer apesar de toda força que possuo. Pois bem, vou ver de novo.
O demônio desceu e espiou para dentro da casa pelo buraco novamente. Dentro da casa, o velhinho voltava e queria comer.
- Querida... Querida já esta pronta a sopa de inhame ralado?
- Querido cozinhei bastante, coma bastante.
Velhinho e velhinha deitaram a sopa de inhame ralado sobre o arroz quente e começaram a comer.
O velhinho comeu e disse: - Como era de se esperar, a sopa de inhame estava deliciosa!
Quando o demônio viu isso ele disse: - Eles comeram tão gostoso os chifres de demônio. Céus! Se me descuido por aqui, também serei comido.
O demônio fugiu depressa e foi para outro lugar.
Depois disso o demônio não foi mais visto no Monte Shirane e os moradores da base do monte viveram tranquilamente desde então.
Por isso comer inhame no dia das crianças tornou-se costume e significa afugentar o demônio.
domingo, 23 de agosto de 2015
terça-feira, 18 de agosto de 2015
Kafka à beira-mar: Uma leitura
Kafka à beira-mar: Uma leitura
Escolástico,
Sérgio Augusto
O objetivo
desta comunicação é introduzir aos leitores incipientes do romance Kafka à
beira-mar, elementos necessários para uma leitura aprazível, bem como, instigar
aos que já a fizeram, o interesse por uma releitura.
O autor
Haruki
Murakami é considerado um dos mais populares escritores japoneses da
atualidade. Nascido em Kyoto no ano de 1949 e criado em Kobe, formou-se em
dramaturgia clássica pelo departamento de literatura da Universidade de Waseda[1],
residiu na Europa e nos Estados Unidos, onde lecionou em algumas universidades. Foi laureado com inúmeros prêmios
literários e com indicações para o Nobel da Literatura. Autor de diversas
obras, entre elas, ensaios, novelas, contos e livros, dentre os quais, podemos
destacar os livros: Caçando carneiros
de 1982; Minha querida Sputinik de 1999; 1Q84 de 2009 e Norwegian Wood de 1987,
que contou com uma tiragem de 20 milhões de cópias e que lhe rendeu o
prestigioso Prêmio Tanizaki.
Haruki Murakami é um escritor
fortemente influenciado pela cultura ocidental. Suas obras possuem uma
linguagem simples, carregada de reflexões filosóficas e bom humor. “É fácil de ler e instrutivo, vem salpicado de um
humor”, afirmou a tradutora Lica HASHIMOTO (2012), em entrevista à Revista
Época.
Desvendando Kafka à
beira-mar
O romance Kafka à beira-mar foi publicado
em sua composição germinal no ano de 2002 originalmente em japonês sob o título
Umibe no kafuka pelo escritor japonês
Haruki Murakami e sua versão em português foi traduzida por Leiko Gotoba[2].
A obra foi publicada em 49 capítulos e um prólogo.
O livro segue a corrente do realismo
fantástico, onde duas histórias se desenvolvem paralelamente em capítulos
alternados e seguindo o roteiro da tragédia grega Édipo Rei.
Nos capítulos ímpares, narrados em
primeira pessoa, o protagonista é o jovem Kafka[3]
Tamura, que foge de casa aos 15 anos, assombrado por uma profecia ditada pelo
pai, um famoso escultor com o qual mantinha uma atribulada relação. Compartilha
suas angustias com um amigo imaginário, apresentado no prólogo pela alcunha de
menino corvo.
Já nos capítulos pares, narrados em
terceira pessoa, nos deparamos com Nakata Satoru, um simplório e simpático
velhinho vítima de um misterioso incidente na infância que o privou da memória
e de algumas capacidades mentais básicas, mas que em contrapartida recebeu o
dom de se comunicar com gatos e fazer chover peixes e sanguessugas.
O leitor vai se confrontar no decorrer das
narrativas com o autocontrole, a rotina de exercícios e o racionamento de
recursos do jovem Kafka e ao mesmo tempo com as extravagâncias e o non-sense de Nakata. As duas situações
parecem querer se entrelaçar ou se tocar a todo instante. A analogia entre as
duas fica por conta dos leitores.
Kafka à beira-mar poder ser visto como um
resumo de todas as obras do autor, pois agrega todas as características
apresentadas nas obras anteriores. Os personagens principais, no entanto, são
desvios significativos em relação aos protagonistas típicos dos romances de
Murakami, que geralmente situam-se na faixa dos vinte a trinta anos e são
possuidores de personalidades corriqueiras.
Apesar de a obra possuir um volume
considerável, o ritmo de desenvolvimento da história ocorre relativamente
rápido. Várias situações podem ser situadas ou atadas dentro de uma lógica
imediata, outras ficam aguardando a oportunidade de se alinharem ao contexto
geral.
Ao final de cada narrativa existe sempre certa
tensão ou mistério a ser desvendado e quando tudo parece estar prestes a ser revelado,
o capítulo chega ao fim, despertando no leitor o desejo de transpor a leitura
do capítulo seguinte.
Como é possível observar o livro todo é
repleto de mistério e simbolismo. O autor parece convidar o leitor para
desvendar o enigma oculto existente em cada página.
Analogia a Franz Kafka
Logo no início, ao se deparar com o
título, o leitor é remetido à lembrança do escritor tcheco Franz Kafka. O
artifício certamente foi utilizado pelo autor para chamar a atenção para os
aspectos comuns entre a história e as obras de Franz Kafka, como que deixando
de sobre aviso a memória dos leitores para as analogias que seriam evidenciadas
no decorrer da trama.
Em A
metamorfose e Carta ao pai onde são abordadas questões relativas à
adolescência, à figura paterna associada à opressão e ao aniquilamento da
vontade humana, estão presentes perspectivas intrínsecas a narrativa em questão. A duplicidade,
o estranhamento, labirinto, criticas e tabus também são características comuns
presente em Kafka à beira-mar e nas obras de Franz Kafka.
Quando o
autor lançou mão do uso do nome Kafka, que em tcheco significa corvo, para
denominar uma de suas personagens principais, ele consegui amarrar em torno
disso toda a trama, como que se fosse factível condensar um livro inteiro em um
nome, tal o grau de ligações possíveis.
Outro
aspecto interessante a ser abordado é o uso de anagrama por Haruki Murakami no
romance em questão, recurso também amplamente utilizado por Franz Kafka. Tal
afirmação é facilmente verificada ao fazermos a ligação entre o nome Nakata
Satoru e as palavras Karasu (corvo em
japonês), Sakura (outra personagem) e katana
(espada japonesa).
Intertextualidade e
exibição cultural
Haruki
Murakami de forma curiosa faz diversas referências diretas a arte e a
literatura, como que instigando o leitor a investigá-las e consequentemente,
depois disso, poderem compartilhar da mesma visão de mundo.
Apesar de
estar ambientada no Japão, a história esta repleta de referencias ocidentais,
evidenciando o estilo globalizado de Murakami, que faz desfilar por suas
páginas: Charles Dickens, François Truffault, Schubert, Prince, Led Zeppelin,
Natsume Soseki, Arnold Schuwarzenegger, John Walker, Walt Disney, Franz Kafka e
suas obras, tragédias gregas, As mil e uma noites, Archiduque Trio, The 400
blows, entre muitas outras.
Entre as
inúmeras obras da literatura japonesa citadas, o autor escreve sobre a Rokujou, personagem de um episódio de Genji monogatari (Contos de Genji), como
introdutório para um capítulo adiante, quando o jovem Kafka fica inconsciente
ao mesmo tempo em que o pai distante (na figura do temido Jonnie Walker) é
assassinado. Evocando a existência do ikiryou[4],
espera o autor desta forma, que o leitor faça a ligação.
Além desse
verdadeiro retalho de intertextualidade que povoa a obra, em diversas situações
onde são descritos acontecimentos e lugares, o leitor será impelido a tentar contextualizar
essas passagens com acontecimentos históricos e lugares reais. O escopo de tal
esforço, justificado por essa análise anacrônica dos fatos é a tentativa de se
aproximar do ponto de vista do autor e do correto entendimento da mensagem, que
o leitor supõe estar sendo apresentada.
Em alguns
trechos o autor deixa evidente a ligação que o leitor deve fazer, em outros, camufla,
de forma a premiar os mais abastados culturalmente.
Personagens e conexões
O protagonista da história é Kafka Tamura, um menino de quinze anos
abandonado aos quatro anos pela mãe, que deixou o lar levando apenas a filha[5].
Durante o desenvolvimento do enredo ele perdoa a mãe e vence o medo e a raiva
dentro de si. Foge de casa e do pai cruel que o privava de desenvolver relações
interpessoais saudáveis. É atormentado por uma profecia de seu próprio pai que
previa que Kafka mataria o pai e desposaria a mãe e a irmã.
Nakata Satoru é apresentado ao leitor
como coprotagonista e talvez a figura mais emblemática da história. Trata-se de
um simplório e simpático velhinho, vítima de um estranho incidente ocorrido na
infância, capaz de gerar chuva de sanguessugas e peixes. Possui um sentimento
de despojamento, alheio a tudo, não reclama da vida, apenas se justifica para
as pessoas por não ser inteligente. Tem por profissão ser um exímio caçador de
gatos perdidos, amparado pelo dom de poder se comunicar com os mesmos. Em sua
caminhada está em busca de uma pedra capaz de abrir e fechar a entrada para
outra dimensão.
No capítulo destinado
a Nakata criança, na ocasião que ocorreu incidente, em uma leitura atenta, o
leitor é levado a acreditar que nesta ocasião a pedra foi aberta
acidentalmente.
Outra personagem de destaque na trama se
traduz na figura da Senhora Saeki, administradora
da biblioteca e suposta mãe de Kafka e que lhe surgia em sonhos com a idade de
quinze anos.
A maneira
como ela passa de uma estudante apaixonada por um jovem brutalmente assassinado
para mãe de Kafka e depois desaparece e seu envolvimento neste lapso temporal tem
que ser atentamente estudado.
Destaca-se ainda o personagem Oshima, jovem funcionário da
biblioteca, andrógeno e que sofre de uma doença que lhe poder tirar a vida a
qualquer momento. Nakata apoia Kafka desde o começo e lhe fornece abrigo em sua
enigmática cabana na floresta.
Segundo
Oshima, tudo no mundo é metáfora. Sua existência nos remete ao livro “O
banquete” de Platão.
A irmã do jovem Kafka é chamada Sakura, uma moça que cruza o caminho de
Kafka e que para ele pode ser sua irmã. Depois de dormirem juntos, a
possibilidade de ter havido incesto atormenta o pensamento do jovem Kafka que
acredita estar a profecia se realizando.
Como companheiro de cruzada de Kafka
Tamura surge Hoshino, um caminhoneiro
de modos grosseiros que larga sua vida monótona para seguir Nakata. Começa a
apreciar a música e a liberdade. Percebe-se que o autor, através de Hoshino faz
uma crítica ao estilo de vida da sociedade japonesa.
No prólogo da obra é apresentado em um
capítulo exclusivo o Menino Corvo, o
alter ego de Kafka. Este surge como um amigo que lhe dá conselhos e o
incentiva.
Koichi
Tamura fica encarregado de ser o vilão da história. O pai de Kafka é
descrito como um famoso escultor. Também encarna a figura de Jonnie Walker (o
mesmo do uísque), que come o coração dos gatos e lhes rouba as almas para
construir uma flauta mágica.
Não menos importante, o enredo conta com a
participação do personagem Coronel
Sanders. A figura é a mesma utilizada pela rede de lanchonetes Ketake.
Auxilia Hoshino na busca pela pedra que abre a passagem entre as dimensões.
Através da
figura do Coronel Sanders, que historicamente nunca foi um coronel de verdade,
o autor chama a atenção para o pós-guerra. Em uma conversa com Hoshino, diz:
- Escuta uma coisa que te vou
te dizer, meu caro Hoshino. Deus só existe na cabeça das pessoas. Aqui no
Japão, o conceito de Deus sempre foi entendido de uma maneira aberta. Vê só o
que aconteceu a seguir á guerra. Douglas MacArthur ordenou ao divino imperador
que deixasse de ser Deus, e ele obedeceu.
Por
intermédio deste personagem o autor critica a segunda guerra e a condição dos
vencidos, que foram levados a aceitar a ocupação americana e por acreditarem que
ao ter participado de uma guerra injusta deveriam esquecer o que passou e
admitir as consequências.
Considerações finais
Com a
conclusão da leitura, muitas dúvidas afloram ao pensamento do leitor no sentido
de identificar sobre o que realmente trata o livro. Para muitos, o livro se
refere à necessidade imperativa das pessoas deixarem suas zonas de conforto
(como o caminhoneiro Hoshino) e fazer algo incomum. No entanto, alguns leitores
acreditam se tratar do ritual de passagem para o mundo adulto, assim como em A Metamorfose , de
Franz Kafka. Ainda dentre as hipóteses levantadas encontramos a possibilidade da
obra abordar a busca por uma alma gêmea ou se tratar de uma viagem metafórica
pelo inconsciente. Provavelmente, como acontecer com outras obras, cada leitor
fará uma leitura diferente, de acordo com seus conhecimentos, sua cultura ou
sua maneira de ver o mundo
Haruki Murakami, em seu site, abriu um espaço para
questionamento dos leitores após o lançamento do livro e recebeu em torno de
oito mil perguntas, das quais, respondeu pessoalmente mil e duzentas, no
entanto, não deu a solução das incógnitas do livro.
Durante uma entrevista para um canal de
televisão disse que o segredo para entender o livro está em reler o livro
várias vezes.
É evidente que a obra de Haruki Murakami é
muito mais que apenas um romance fruto da imaginação de um excelente escritor.
Trata-se de um trabalho minuciosamente elaborado, com uma trama complexa que
esconde nas entrelinhas segredos frutos de anos de estudo.
Talvez apenas releituras não sejam
suficientes para a compreensão do livro, talvez seja preciso o conhecimento de
mundo do autor ou um conhecimento cultural em especial. Talvez o
leitor nunca saiba se algum mistério a ser descoberto realmente existe. Mas
certamente a cada pista seguida é possível descobrir um novo mundo, e para
explorar esses mundos em sua totalidade seria necessário um tempo ilimitado,
que só poderia ser alcançado, assim como no livro, em outra dimensão, mas que
de qualquer forma, necessita de um primeiro passo.
Referências
bibliográficas
Haruki
Murakami. Disponível em: <http://www.randomhouse.com/>. Acesso em: 20 de
abril de 2014.
KAFKA,
Franz. A Metamorfose. Tradução de Modesto Carone. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997. 96 p.
KAFKA,
Franz. (1919) Carta ao pai. Trad.
Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2006. 112 p.
MURAKAMI,
Haruki. (2002). Kafka à beira-mar. Trad.
Leiko Gotoda. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2008. 571 p.
NAMEKATA,
Márcia Hitomi. O teatro Nô: Tradição e modernidade. Curitiba, julho de 2013.
Projeto de extensão da UFPR.
PLATÂO.
O Banquete. In.: Os pensadores.
Tadução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Victor Civita, 1972.
269p.
PONTES,
Felipe. Como Haruki Murakami conquistou
leitores que preferiam a internet à literatura. Época, 16 de novembro de
2012. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/cultura/noticia/2012/11/como-haruki-murakami-conquistou-leitores-que-preferiam-internet-literatura.html>.
Acesso em: 20 de abril de
[1] Waseda Daigaku é também
conhecida pelo nome de Soudai.É uma
instituição particular de ensino superior, localizada na cidade de Tóquio. Foi
fundada em 1882 e esta entre as 20 mais conceituadas universidades do Japão.
[2] Kafka à beira-mar [ Umibe no Kafuka, 2002]. Rio de Janeiro:
Alfaguara, 2008. Tradução do japonês Leiko Gotoda. 571 p..
[3] Nome
adotado pela personagem e cujo nome real não é revelado no decorrer da história.
[4] Conceito japonês para alma de vivo ou de
morto que assolada por fortes emoções pode viajar para longe de seu corpo para
resolver assuntos pendentes.
[5] A
existência de lares desfeitos começou a surgir nos noticiários japoneses como
tema recorrente no final dos anos 90, escandalizando a sociedade. O autor situa
muito bem o exemplo da família de Kafka.
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